sexta-feira, 28 de março de 2014

Mitos e verdades sobre as UPPs

Fiquei um bom tempo fora aqui do blog e isso pode ser explicado por dois motivos:

1) Minha vida pessoal passou a tomar uma boa parte do tempo disponível que eu tinha anteriormente.
2) Uma das principais funções assumidas por esse blog (desconstruir a imagem cor-de-rosa semeada pela imprensa carioca sobre as Unidades de Polícia Pacificadora), começou a se tornar desnecessária, na medida em que casos de violência e mazelas começaram a pipocar nas UPPs e a imprensa começou a se questionar sobre a real eficácia do modelo até então considerado irretocável e sagrado (principalmente a partir de 2012).

Mas (infelizmente ou não) minha atividade profissional me colocou de volta no caminho das UPPs nas últimas semanas. Devido aos ataques sofridos pelas Unidades de Polícia Pacificadora, acabei sendo levado a cobrir esse tema e voltei a me envolver com essa questão.

E, quando você imerge em um tema da forma como aconteceu comigo nos últimos dias, você é levado a refletir sobre ele.

Diante de todas as informações que obtive ao longo desses seis anos de existência da UPP e dos fatos que constatei nos últimos dias, resolvi escrever um guia com mitos e verdades sobre essa “política”.

Então vamos lá:
1) As UPPs não acabam com o tráfico, mas acabam com o poder paralelo de quadrilhas armadas nas comunidades.

Mito. Há inúmeras ocorrências de tiroteios entre policiais e criminosos (e de assassinatos a mando do tráfico) noticiadas pela imprensa desde 2009 em comunidades ditas pacificadas, que mostram que não é só o tráfico que continua nessas comunidades. As mesmas quadrilhas que controlavam a venda de drogas nas comunidades antes das UPPs continuam comandando o negócio. É seguro dizer que em quase 100% (se não em 100%), o negócio é guardado por homens armados. Em algumas favelas, as armas são os mesmos fuzis que o governo fluminense prometeu extirpar das favelas. Nas comunidades maiores, a hierarquia do tráfico continua a mesma que era antes da pacificação, como é o caso dos Complexos do Alemão/Penha e da Rocinha: a liderança da facção continua controlando os negócios ilícitos e conta com um testa-de-ferro dentro da favela (“dono” ou “frente” do morro). Em geral, as vendas da cocaína e da maconha são responsabilidade de gerentes diferentes (“gerente do preto” e “gerente do branco”), que controlam os “vapores” (vendedores da droga). E as grandes favelas são até subdivididas em gerências regionais. Há uma divisão armada, composta pelos soldados, que, em geral, são comandados por um gerente operacional. Há também os armeiros (responsáveis pela negociação e manutenção das armas) e os contatos com atacadistas exteriores (que abastecem a favela com a droga). Com o poder da arma, a ditadura do medo continua semeada em muitas dessas comunidades.

2) Nas comunidades com UPPs não há mais ostentação de armas.

Meio verdade, meio mito. É claro que não se vê mais homens armados na entrada das favelas, nas ruas principais ou nas lajes das casas. Mas, se as bocas-de-fumo continuam sendo guardadas por fuzis, a arma continua sendo ostentada na favela, sim. Fuzil não é uma arma que você consiga guardar na sua cintura ou no seu bolso. Ainda que o fuzil seja ostentado apenas em vielas, ou no momento do ataque a policiais, há sim ostentação.

3) Nas comunidades com UPPs acabaram os tiroteios.

Mito. Apesar de pouquíssimas comunidades não terem registrado mais tiroteios (Santa Marta, por exemplo), há ainda tiroteios na maioria das favelas “pacificadas”. Mas para responder a essa pergunta, é preciso entender quais são os provocadores de tiroteios nas favelas. E, basicamente, só há duas razões para os tiros: disputa pelo controle dos pontos de venda de drogas (que pode durar apenas um dia ou pode se arrastar por meses ou anos) ou ação policial. Eu me arrisco a dizer, sem medo de errar, que a grande maioria dos tiroteios é provocada pela própria polícia nas dezenas de ações injustificadas e despropositadas que acontecem toda semana em várias favelas do estado. Uma vez que a polícia está lá dentro, a necessidade de trocar tiros para entrar na favela se acaba. No entanto, perseguições policiais, ataques de criminosos e encontros “casuais” entre policiais e bandidos na comunidade resultam em tiroteio. O outro motivo para tiroteios, que é a disputa pelo controle dos pontos de venda, também reduz sua probabilidade de acontecer, já que a própria polícia acaba “propositadamente ou não” fazendo um cinturão de segurança nas bocas-de-fumo. No entanto, mesmo assim há casos de confrontos entre quadrilhas rivais. No Babilônia/Chapéu Mangueira, há pouco tempo, teve uma tentativa de invasão. Na Rocinha, a quadrilha da parte alta brigou com a quadrilha da parte baixa e houve mortes relacionadas a esse conflito.

4) O tráfico de drogas nas favelas com UPPs ocorre em uma escala muito menor do que antes da ocupação policial.

Mito. Durante as investigações da infame Operação Paz Armada (a mesma que resultou na tortura e morte de Amarildo de Souza), em 2013, a Delegacia de Polícia da Gávea (15a DP) revelou que o tráfico de drogas na Rocinha, mesmo um ano depois da instalação da UPP na comunidade, continuava movimentando cerca de R$ 6 milhões por mês (isso dá R$ 72 milhões por ano... Peraí, deixa eu escrever de novo SETENTE E DOIS MILHÕES DE REAIS... SE-TEN-TA E DO-IS MI-LHÕ-ES). Bem, acho que a UPP não afetou tanto o lucro do tráfico na Rocinha, cuja economia continua movimentando montantes semelhantes ao período pré-ocupação.

5) Os traficantes não ficam em locais fixos das comunidades, mas se movimentam com “pequenas” quantidades de droga para evitar a apreensão policial.

Meia verdade. A própria Coordenadoria de Polícia Pacificadora (CPP) já reconheceu que existem pontos que são controlados pelos criminosos, como a Quinta Estação (no Pavão-Pavãozinho), e Chuveirinho e Inferno Verde (no Complexo do Alemão)

6) A resposta padrão das autoridades fluminenses para explicar os problemas que acontecem nas comunidades que supostamente estariam pacificadas é: “Não conseguiremos consertar 40 anos de descaso e violência nas comunidades fluminenses de uma hora para outra. Serão necessários mais... (aí a resposta varia) 10 anos, 20 anos, 30 anos para que as UPPs consigam reverter esse quadro”. É verdade ou mito?

Bem. Isso é, em parte, verdade. Vamos aos fatos. O problema da violência epidêmica nas comunidades, na verdade, não tem 40 anos. Apesar do tráfico de drogas ter crescido nas décadas de 60 e 70 no Rio de Janeiro, as facções criminosas só começaram a se armar e disputar controle territorial em meados da década de 80. Bem então, não são exatamente 40 anos (ou um século como o coordenador das UPPs, Frederico Caldas, chegou a dizer), são cerca de 30 anos. E, desses 30 anos, o governo atual, que assumiu em 1o de janeiro de 2007, responde por sete anos, ou seja, 23% do período em que há controle armado territorial nas favelas fluminenses. E as UPPs existem há seis anos, ou seja, representando 20% desse período de 30 anos. Então, reconheçamos que um governo que está há sete anos e dois meses no poder, já deveria ter conseguido resolver boa parte do problema, criado nos 23 anos anteriores. Estou certo ou estou sendo muito exagerado? O governo, ao usar essa desculpa, está sendo, no mínimo, malandro, uma vez que está jogando a suposta solução para um horizonte politicamente distante (10, 20, 30 anos no futuro). Nesse período, governos opositores assumirão e será muito fácil jogar a responsabilidade de um fracasso nas mãos deles.

7) Mas você não acha que 3 ou 4 anos são pouco tempo para reverter o problema com as UPPs?

Sinceramente, sim. Mas eu sempre disse que não dá para acreditar em soluções mágicas (i.e. UPPs). Poderíamos ter conseguido resultados muito melhores do que as pífias conquistas que obtivemos nesse período, se tivéssemos investido em outras políticas de segurança, em vez de voltarmos 95% das baterias e recursos para uma política baseada na ocupação territorial militar. Uma vez que acreditamos que encher a favela de policiais resolveria nossos problemas da noite para o dia, passamos a acreditar que a violência não era mais um calcanhar-de-aquiles e a não exigir que o cerne do problema da segurança pública fosse resolvido.

8) O governador Sérgio Cabral e o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, dizem que ninguém é ingênuo de acreditar que as UPPs resolveriam os tais “40 anos de abandono”.

Bem, então eles eram ingênuos (ou tratavam o povo como burro) ao anunciar, em cada nova inauguração de UPP, que o Estado estava “retomando o território”, “acabando com o poder paralelo”, “livrando as pessoas do tráfico” etc etc... Vejamos algumas afirmações de Cabral no passado:
“As reconquistas dos territórios tanto da Vila Cruzeiro quanto do Alemão já foram efetivadas” (Cabral falando sobre a ocupação do Complexo do Alemão, G1, 29 de novembro de 2010)
“Agradeço imensamente o apoio que eu tive da população do Rio durante toda a campanha e quero reforçar que minha prioridade continuará sendo segurança pública. Vou repetir que até 2014 o Rio não terá mais comunidade dominada pelo poder paralelo do tráfico” (Cabral ao comentar a vitória nas eleições de 2010, O Globo, 3 de outubro de 2010)
“Todas as comunidades onde houver o poder paralelo serão completamente retomadas pelo poder público porque é isso que população quer” (Cabral ao comentar vitória nas eleições de 2010, Portal IG, 3 de outubro de 2010)
"Eu não estava feliz porque não tinha paz. Agora, estamos resgatando a paz." (Cabral sobre a ocupação da Rocinha, Portal Terra, 13 de novembro de 2011)

Bom, mas nada melhor do que esse vídeo, da campanha de 2010, para confrontar a posição pseudo-realística de hoje do governador, com a utopia que ele vendeu aos cidadãos fluminenses:

Aos 3 minutos e 55 segundos do vídeo, Cabral solta a pérola: “Vamos terminar o segundo mandato, se eu for reeleito, sem nenhuma comunidade com poder paralelo no Rio de Janeiro. Isso é um compromisso meu, com meus filhos, com minha família, com os moradores desse estado, comigo mesmo, com Deus”

E aos 5 minutos e 42 segundos, Cabral resume seu medíocre plano para a segurança pública: “A gente tem metas... E as UPPs... As UPPs pacificam comunidades, pacificam regiões”.

Bem, pessoal, pensem por si mesmos. Cabral se comprometeu com seus filhos, com a família e até com Deus, que não haveria nenhuma comunidade com “poder paralelo” até este ano. Mas agora que “deu ruim” (para usar a gíria popular), Cabral disse que ninguém era ingênuo de achar que a UPP ia acabar com a violência nas comunidades.

Eu, graças a Deus, nunca fui ingênuo, mas não posso dizer o mesmo do governo, da imprensa e da esmagadoria maioria da sociedade.
Eu sou contra as UPPs? Não.
Acho que a UPP melhorou alguma coisa? Muito pouco, prova disso é que os índices de homicídio no estado cresceram 17% em 2013 (na comparação com 2012) e voltaram aos patamares de 2010 (4.700 assassinatos por ano). Em janeiro de 2014, já houve 18% mais homicídios do que em janeiro do ano passado.
Eu preferiria que não existissem as UPPs? Na verdade, eu gostaria que existisse uma política que desse resultados melhores e mais consistentes do que as UPPs.


A continuar...

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